quinta-feira, 9 de maio de 2013

ESQUIZOFRENIA VIRTUAL.

                                                        
                                                            “Descobrir de onde veio a vida…
Por onde entrei deve haver uma saída.
Mas tudo fica sustentado pela fé.
Na verdade ninguém sabe o que é.”
In: Eu Não Sei Na Verdade Quem Eu Sou  - O Teatro Mágico
– Eu pedi essa merda de café já tem mais de 40 minutos!!!! Vocês foram colher os grãos, é????

Diante da atônita funcionária e de uma desconcertada plateia, ouço o rapaz de seus 20 e poucos anos, com um iPhone em uma das mãos, esbravejar publicamente, em direção à assustada jovem, sua pressa e falta de educação.
Intriga-me, sobremaneira, o episódio, porque entrei logo depois deste moço – sei disso porque ouvi quando ele fez o pedido – e não faz nem dez minutos que isso aconteceu!
Sem ao menos perceber o desconforto provocado pela destemperada manifestação, lá está ele de volta ao tamborilar irritante do pequeno teclado de seu aparelho interrompido, segundos depois, por sua sonora gargalhada.
O que terá visto ele na tela? Ou, ainda, o que lhe chegou aos olhos assim de tão engraçado ou, quem sabe, inusitado?
Observo a aflita garçonete entregar o café e afastar-se rapidamente, talvez temendo um segundo ato do surto cruel. O rapaz, sem desviar os olhos da tela que mantém diante de si, imediatamente pega a xícara que foi depositada sobre a mesa e leva-a até a boca sem dispensar a menor atenção ao gesto da atendente ou, ainda, fazer qualquer menção a um possível agradecimento.
Continua divertindo-se com algo que assiste, alheio aos olhares de todos aqueles dos quais, instantes antes, despertara a atenção.
Pouco depois, no entanto, o bar retoma sua rotina como se absolutamente nada de especial ali tivesse ocorrido.
E eu, já devidamente servida do meu chocolate quente, continuo a contemplar aquela cena insólita que me fez, posteriormente, divagar sobre alguns temas que julguei pertinentes.
De fato, a já tão decantada esquizofrenia virtual que, no meu modo de ver, carece de mais discussão e aprofundamento, ali se configurava de maneira plena. Enquanto o rapaz vociferava, contra a atenciosa moça que o servia, uma premência incompreensível e alucinada, os demais placidamente assistiam a cena sem esboçarem qualquer tipo de reação ou sentimento.
Em tempos de necessidades criadas e, incompreensivelmente, urgentes, um rapaz precisa tomar seu café num prazo que não atrapalhe sua permanência na rede. A rede, desta forma, vira a vida que se vive de verdade. E o cotidiano, torna-se um mero entrave para o desenrolar dela. Feito o coelho da Alice (no assustador país das maravilhas), ele grita: “– É tarde! É tarde! É tarde até que arde! Ai, ai, meu Deus! Alô, adeus! É tarde, é tarde, é tarde!”.
Naquela cena do café, de todos os lados, um alarmante sinal de que ninguém se importa muito com o que acontece a sua volta. Nem o jovem, nem sua inesperada audiência. Ao mesmo tempo que gritava, provavelmente postava um recado delicado em alguma rede social, do tipo: “-e aí, baby, alguma novidade?” ou “tô morrendo de saudade…”
Sinto-me confortável pra levantar esta hipótese porque já presenciei pessoas conversando animadamente numa roda de amigos enquanto publicavam palavrões ou provocavam possíveis desafetos em discussões virtuais.
E vi gente acabada de tristeza em cima de uma cama postando uma foto, tirada há dias, onde aparecia incrivelmente bem e satisfeita.
Também conheço quem inventa viagens que nunca fez, amigos que nunca teve e festas que nunca existiram para registrar em suas “timelines” – como resultado de uma vida espetacular e repleta de acontecimentos memoráveis.
Esquizofrenia foi um termo criado em 1911 pelo psiquiatra suíço Eugem Bleuler a partir das palavras gregas skizo (cisão, divisão) e phrenos (mente, espírito). Significa, portanto, “mente dividida”. É, por definição, uma doença que se caracteriza pela desorganização dos processos mentais levando o portador a apresentar diversos sintomas, tais como: crenças incomuns ou estranhas que possuem proporções delirantes (como nos pensamentos mágicos); experiências perceptuais incomuns (sentir a presença de uma pessoa ou força invisível na ausência de alucinações constituídas); discurso que pode ser geralmente compreensível, porém digressivo, vago ou demasiadamente abstrato ou concreto. Os indivíduos que eram socialmente ativos podem tornar-se retraídos, perder o interesse em atividades com as quais anteriormente sentiam prazer, tornar-se menos falantes e curiosos e passar a maior parte do tempo na cama. É comum membros da família relatarem a sensação de que o indivíduo estava se esvaindo, ou seja, indo embora aos pouquinhos.
Ora, se esta doença é designada pela perda do contato com a realidade onde a pessoa pode ficar fechada em si mesma, com o olhar perdido, indiferente a tudo o que se passa ao redor ou, ainda, ter alucinações e delírios, imaginando coisas e, no fim, acreditando nelas, o que será que acontece com uma pessoa com sintomas semelhantes diante de uma tela de computador?
Quem já não observou pessoas sentadas numa mesma mesa, absortas e totalmente desligadas do entorno, enquanto acessam conteúdos online, digitam textos, respondem mensagens, combinam encontros, brigam e se comovem ao mesmo tempo em que sonegam um mínimo de intimidade aos parentes ou amigos que mantém ao lado?
Não seria este ‘sintoma’ uma nova forma de esquizofrenia coletiva e social caracterizada pela  vivência de um mundo paralelo que, de alguma forma, nos torna incapazes de experimentarmos a intimidade tão imprescindível quanto vital?
Já imaginou um bebê crescendo sem experimentar manifestações de afeto, colos, beijos e abraços? O que seria de seu desenvolvimento se tudo isso fosse sonegado e relegado a um contato frio e distante? E quem pode afirmar que, mesmo depois de “crescidos”, nós, humanos, prescindamos de calor verdadeiramente… humano?
Já ouviu falar que falta de amor provoca doenças e…. mata?
Intimidade, como sabemos, se refere a capacidade de compartilhar o que nos é  ’interno’; revelar-se para outra pessoa sem medo de rejeição, num contexto particular de afeição, confiança e compreensão. É, de algum jeito, um ato de fé.
Mas se, por outro lado, perdemos a fé de sermos aceitos como somos, com nossas falhas, imperfeições e mazelas, um perfil que se pode editar, colorir e reformar – de maneira a nos tornar aquilo que desejamos ilusoriamente ser – nos serve como uma espécie de realidade paralela, muito semelhante àquela que o esquizofrênico experimenta de maneira profunda e dolorosa, posto que sem direito a edições ou retoques.
Portanto, causa-me estranheza que não estejamos mais engajados nesta indispensável reflexão acerca dos descaminhos que a utilização exagerada deste arsenal tecnológico vai introduzir em nosso desenvolvimento humano.
Porque desenvolver-se de maneira humana implica em aperfeiçoarmos nossas verdadeiras aptidões e talentos, dentro de um espaço protegido e privado, cercado de pessoas que se interessem de verdade pelo criativo gesto humano. Onde amor, carinho, solidariedade, atenção e generosidade sejam sentimentos presentes que caminhem juntos, completamente interligados.
Pois, como tão bem disse o poeta Moacyr Félix: “Pensar, ou ser poeta, é interrogar-se interrogando o mundo que está dentro de nós, o mundo que é nosso ser, o mundo em que descobrimos no outro a nossa verdade, o mundo em que nos descobrimos história.


Heloisa Lima - psicóloga.

Nenhum comentário:

Postar um comentário